As verdades absolutas - Crônica de Juliano De Ros - 2022

 

As verdades absolutas

Crônica de Juliano De Ros

 

       Em um curso EAD sobre a história do rock heavy metal promovido por uma grande e reconhecida universidade de Porto Alegre, agosto de 2022, o professor falava aos seus atentos alunos sobre as origens do movimento cultural e do estilo musical.

      O chat da aula fervilhava com a participação generalizada. Perguntas, opiniões, discussões paralelas acaloradas sobre qual banda era a melhor, sobre quem plagiou quem, e por aí vai. Ouvidos abertos sugando o conteúdo despejado com emoção pelo mestre que, pelo visto, não escondia seu conhecimento e tampouco a condição de fã incondicional do estilo. As raízes do heavy metal penetravam nas distorções acústicas de artistas e bandas dos anos 50 e 60, ocasionadas pelos mais inusitados motivos, desde um amplificador que caiu no transporte, danificando uma válvula e mudando o timbre, ao “fera” que queria “algo diferente” e retalhou o alto-falante com uma navalha para “metalizar” o som da sua guitarra. E o assunto ia progredindo, passando pela influência do blues do delta do Mississipi em Norteamérica, até as grandes bandas dos anos 70, com seu som pesado e inovador. Led Zeppelin e seu hard rock, Black Sabbath e Judas Priest. Segundo o professor, essas seriam as bandas proto heavy metal. Rebuliço no chat: -Mas professor, o Black Sabbath, talvez a mais conhecida banda de heavy metal do mundo, você não classifica como sendo a primeira banda verdadeiramente do estilo? A resposta foi taxativa, ou, como se diz, na lata: -Não. Considerando o estudo que fiz seria o que podemos chamar de proto-heavy metal e não uma verdadeira banda heavy metal. Os riffs de guitarra andando à parte do baixo e da bateria, o baixo passeando solto na música fazendo solos, não, não qualquer semelhança com o heavy metal moderno no qual todos esses instrumentos formam um núcleo duro, uníssono. Em suma, o Black não é uma banda de heavy metal.  
 
     Queixos caídos no pequeno público mais velho, roqueiros cinquentões e sessentões infiltrados no curso. A gurizada ouvia tudo aquilo com a maior naturalidade, como verdade absoluta e concreta, sem surpresa. Era aquilo mesmo, o heavy metal de verdade era outra coisa. Até curtiam o som do Black Sabbath, mas não era mais reconhecido como sendo representante do estilo. -Bah, professor, e quando entrou o Ronnie James Dio na formação, o Black Sabbath não assumiu essa postura moderna? perguntou um inconvencido aluno velha guarda. -Não, nem aí, afirmou o mestre. Inconformismo e estranhamento ecoaram sem som no fundo da plateia. Um barba grisalha ria nervoso e balançava a cabeça negativamente, outro, mandava mensagens indignadas no chat: -O Led é a maior banda de hard rock de todos os tempos! -O Black Sabbath “proto” bota no bolso tudo que veio depois! Uma velha roqueira se insurge com dislaikes de ambas as mãos. Tumulto nas minorias...

      Dois dias e duas noites, e aquela situação martelando a cabeça de Antônio. Pensa daqui, pensa dali, elabora, analisa suas próprias verdades, relembra, resgata as verdades correntes da época de faculdade, tudo no foco do que era ou não era rock pesado e rock metal, tudo atolado nos anos 80 e 90. Noites em Porto ouvindo a rádio Bandeirantes FM, depois Ipanema FM, Ricardo Barão e seu programa de rock pesado, Katia Suman e outros ícones da comunicação roqueira. Lá, a verdade era que o Black Sabbath era o supra do heavy metal. Era o conceito vigente e todos concordavam com isso. E, de fato o era. Veja só, dizia Antônio para sua filha de vinte e dois anos, as verdades mudam. A gente é que não percebe. No que acreditávamos há vinte, trinta anos, e friso, uma geração inteira botava fé naquilo, hoje virou pó. Não vale mais. Meu consolo filha é que a verdade absoluta de hoje, provavelmente também não o será daqui a vinte anos. A história anda. O novo estará sempre ali à nossa espreita, seja na música, na política, nas convicções pessoais perante os desafios da vida, seja no que for. Não seremos os mesmos, e os que quiserem teimar serão o velho. Velhos de vinte, trinta, cinquenta anos, ou da idade que seja.

     Já dizia o poeta louco quando do lançamento do livro Semovente: somos semoventes, seres que se movem, e dava uma risadinha silenciosa com os olhos e o canto da boca. Aí filha, as pessoas ficavam embasbacadas pensando se se tratava das “pedras que rolam não criam limo” ou se ele referia à denominação técnica do gado, na economia e contabilidade. Bem assim, as grandes verdades e conceitos que conhecemos e talvez até os dogmas tenham prazo de validade, alguns, bem curtos, alguns, décadas, outros, até séculos e séculos, mas, é quase certo quanto eles próprios, em algum momento serão página virada no registro da história e na compreensão da mente humana. A filha olhava perplexa para Antônio e sua filosofia de mesa de bar quando foi surpreendida por um: -Você não concorda? A guria hesitou, pigarreou, mediu as palavras e saiu-se com um diplomático: -Veja pai, depende da visão de cada historiador, algumas coisas podem mudar, outras não, é certo que o Black Sabbath tem a veia heavy metal, ninguém pode negar. -Tá filha, mas eu estou falando da mutabilidade das verdades “absolutas”, não só sobre estilo musical reafirmou, procurando extrair algo da filha que o fizesse compreender e validar o próprio raciocínio. A resposta foi mortal e incompreensível: -Sabe pai, eu sou de Câncer, eu me adapto! E sedimentou no pai a sensação de que os tempos se movem feito os vendavais, arrancando certezas, impiedosamente. 

      Mais do que nunca, Antônio, proto-heavy metal, sentiu-se velho, muito velho... e percebeu no seu íntimo que o suceder metódico dos dias que lhe esboroara a juventude, já começava a carcomer, inexoravelmente, também o professor e suas certezas professorais.

 

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